quarta-feira, 6 de julho de 2011

A violência e o carisma da paixão

Abaixo temos um texto elaborado por um Sacerdote Passionista onde ele conta um pouco como foi conviver com a triste situação onde jovens foram assassinados (relembre o caso aqui). Não precisamos, por não sermos passionistas, achar que nada temos com o texto. Ele serve para reflexão acerca de como vemos os problemas e dificuldades que assolam nossa realidade, nossa sociedade. E mais! Todos deveríamos ser passionistas. Todos deveríamos anunciar a Paixão de Nosso Senhor como verdadeira fonte de vida.

A Violência e o Carisma da Paixão
Passei um bom tempo pensando no que escrever. Depois de um período de reflexão e olhando para o interior da nossa vida e prática Passionista, decidi escrever sobre A Violência e o Carisma da Paixão. Por quê? Por que acredito que as novas e diversas feições da violência exigem uma releitura da nossa razão de ser Passionista. Caso contrário, perderemos o direito de sermos discípulos e discípulas de Jesus, de São Paulo da Cruz, de Maria Madalena Frescobaldi e de tantos outros/as que se preocuparam com a vida e vida com dignidade.
Entre os meses de janeiro e março deste ano Luziânia, a cidade onde moro juntamente com mais três religiosos passionistas, virou notícia nacional e internacional. A razão foi o bárbaro assassinato de 7 (sete) jovens entre 14 e 19 anos neste curto período. Neste tempo, de forma especial, fui profundamente questionado em minha fé e em meu ministério. Minha formação à Vida Religiosa Passionista, minha Profissão Religiosa e, sobretudo, minha Ordenação Presbiteral, “foram colocadas à prova.” Como SER PASSIONISTA diante de tamanha crueldade? Depois das várias reuniões com as autoridades e com as famílias desses jovens, como VOLTAR para casa? Depois de ir até o vale onde aqueles jovens foram “sepultados”; depois de “visitar” cada cova rasa, como não CHORAR? No decorrer dos acontecimentos, entre encontros e desencontros, como CELEBRAR a EUCARISTIA como MEMÓRIA ATUANTE de Jesus? Todos esses acontecimentos fizeram doer meu corpo...
Era preciso reler muitas coisas! Meus “pés passionistas” pisavam um novo chão! Chão de perdas sem pedir licença. Chão habitado por mães desesperadas, visivelmente cansadas e com marcas doloridas no corpo, provocadas pelo sol forte e pelos galhos secos do cerrado goiano. Marcas provocadas ainda pelos estreitos caminhos tantas vezes percorridos na esperança de encontrar seus filhos. Dores. Dores por gritar, por se sentirem impotentes. E era esse o meu chão, o meu ponto hermenêutico. O meu cuidado era o de não perder a COMPAIXÃO!
No dia 12 de maio passado, no ginásio de esportes da cidade, aconteceu o velório coletivo de cinco dos sete jovens (guardem esses nomes em sua memória: Paulo Vitor, Márcio, Flávio Augusto, Divino Luiz e George Rabelo).
Na noite daquele dia foi muito difícil dormir. Parecia que meu corpo queria permanecer em vigília. Decidi então escrever. Talvez tenha sido para eternizar, no mais humilde dos desejos, aquele acontecimento. Partilho com você...
“Hoje vivi uma das experiências mais fortes da minha vida. VER caixões perfilados, lacrados, rodeados pelas mães, pelos pais, pelos irmãos e irmãs, não foi nada fácil. OUVIR choros, lamentos, foi terrível. Literalmente experimentei DESCER à “mansão dos mortos”. Ao final estava com uma terrível dor de cabeça a ponto de sentir vômitos. Essa foi a “forma mais sublime” de o meu corpo reagir, a maneira que meu corpo encontrou de entrar em comunhão com aquela atmosfera... naquele ginásio...
Dias atrás fui até o local onde supostamente esses jovens deram o último suspiro. “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. Pensei que poderia ter sido assim. Entrega livre. Entrega gratuita daquilo que temos de maior valor – a vida – para quem amamos na certeza de que saberá cuidar bem dela como quem cuida de um tesouro. Mas não foi assim! Foram corpos levados a contra gosto ao matadouro. Por isso, não foi entrega livre, pois ainda não tinha chegado a HORA daqueles jovens. 13, 14, 16, 19... É uma matemática onde a soma é ainda muito pequena.
Por que aqueles jovens foram até aquele “vale de morte”, ainda hoje ninguém tem respostas. Só perguntas. Mortos, foram colocados em covas rasas. Pude vê-las por duas vezes (agora compreendendo porque tudo que é absurdo, exige provas!). O lugar é inóspito, talvez seja por isso que não puderam mais voltar para suas casas. Ficaram naquela “mansão dos mortos” por um longo tempo. Até serem apontados pelo próprio assassino, Admar Jesus da Silva.
Depois que foram encontrados os restos mortais, o tempo de espera foi longo demais. Foi um tempo de muitas reuniões, protestos, lágrimas. Um tempo de olhares profundos fitando o infinito... Tempo de reunir a comunidade para reacender a indignação. Tempo para lutar por um novo mundo possível e necessário.
Na terça-feira da Semana Santa era dia da tradicional procissão do encontro - uma prática devocional comum aqui em Goiás. Mas o momento pedia de nós um novo encontro. Por isso, saímos às ruas da cidade pedindo um encontro de Jesus com Diego, Paulo Victor, Divino Luiz, George, Flávio e Márcio Luiz. Um encontro de Maria com Dona Aldenira, Dona Sônia, Dona Mariza, Dona Sirlene, Dona Valdirene e Dona Maria Lúcia, mães que queriam encontrar seus filhos para juntos se prepararem para a festa da páscoa que se aproximava...
Os dias foram passando. Aconteceu a páscoa de Jesus e elas continuavam sem seus filhos... E o Dia das Mães? Como comemorá-lo se a família não estava completa? Eles não retornaram, nem mandaram notícias. Por isso, mais uma vez, lágrimas foram jorradas, misturadas aos lamentos. E elas viveram um Dia das Mães muito diferente dos outros anos!
Depois de um bom tempo de incertezas, mas mantidos por um fino fio de esperança, pois algumas mães ainda alimentavam a esperança da possibilidade daqueles ossos não serem de seus filhos, veio a triste notícia: seus filhos estavam mortos. A ciência provou! O DNA comprovou! E a esperança acabou.
O velório foi marcado. Velar o que se não tinham mais corpos? Velar ossos. E ossos secos. Mas mesmo assim era uma forma de acalanto para aquelas famílias. Pelo menos poderiam chorar de perto seus filhos. Sepultá-los e também poder “visitá-los” quando a saudade não couber mais dentro do coração, mesmo num coração de mãe que é tão grande!
Recordo que aquele 12 de maio amanheceu diferente: enfumaçado e um pouco mais frio do que os dias anteriores. Talvez porque corações ainda jovens foram impedidos de pulsar! Parece que também o cosmos estava triste por este acontecimento. Estava difícil brilhar logo de manhãzinha sabendo que logo, logo teria que velar e sepultar os ossos de seus filhos. Ah! Na noite anterior choveu aqui em Luziânia. Foram águas ou lágrimas do Criador? Perguntei para mim mesmo.
Passava das oito da manhã quando os corpos chegaram ao ginásio de esportes. O primeiro momento foi reservado somente para os familiares. Momento de intimidade! Depois as pessoas foram adentrando no recinto. Algumas por curiosidades, outras por solidariedade...
Por volta de 11h, um pastor da Assembléia de Deus e eu, coordenamos um momento de oração (Desde ontem, quando recebi a notícia do velório, pensava num texto bíblico que pudesse nos iluminar. Logo veio Ez 37, 1-14. E foi esse texto que refleti junto com o povo presente). Ao final, com a bandeira do Brasil, passando sobre os caixões, cantamos numa única voz: “Eu só peço a Deus que a dor não me seja indiferente. Que a morte não me encontre um dia solitário sem tem feito o que eu queria...”
E, em seguida, fomos ao cemitério sepultá-los para que pudessem descansar em paz. Não mais naquelas covas rasas, feita às presas, frutos de uma ação proibida...
Pe. Célio Amaro, CP

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